Como pequenos agricultores e vaqueiros mantêm o Cerrado vivo na Bahia

Resumo da notícia

  • Há mais de um século, as comunidades de fecho de pasto no oeste baiano preservam o Cerrado
  • Criam gado em terras de uso comum, coletam espécies nativas e cultivam alimentos orgânicos
  • Sua diversidade de produtos garante o abastecimento de várias cidades da área, que compram das comunidades alimentos que vão do feijão à farinha
  • A região tem visto o avanço de grandes produtores de soja, milho e algodão, a chegada do agronegócio seca os rios e enche as águas de pesticidas

Agência Bomgabay | Há mais de um século, os ciclos naturais do Cerrado ditam a vida de agricultores e vaqueiros no extremo oeste baiano. Os chamados geraizeiros e moradores das comunidades de fecho de pasto criaram uma harmonia com a savana mais rica em biodiversidade no planeta. É ela que guia onde criam seus rebanhos de gado, quando semeiam suas roças e de onde retiram as águas para sua sobrevivência e sustento. Mas hoje é o Cerrado que depende deles na região.

A Associação Comunitária dos Pequenos Criadores do Fecho de Pasto de Clemente, do município de Correntina, a 850 km da capital, Salvador, se destaca na proteção ambiental. Ela afirma que o oeste baiano tem “milhares de camponeses produzindo uma diversidade de alimentos” há mais de 60 anos, com pouco ou nenhum apoio estatal. Mesmo assim, seu trabalho gera frutos. No fim de julho, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) premiou a associação por sua agricultura comunitária, considerada um exemplo de boas práticas no campo.

“O que garante o Cerrado vivo por aqui é a forma com que preservamos a vegetação, todos juntos”, diz Eldo Moreira, membro da associação. Até hoje, não se sabe exatamente quantos outros fechos como o de Clemente existem na região. Sabe-se, porém, que praticamente todos destinam áreas de Cerrado de uso comunitário (os “fechos”) para a extração de espécies nativas, como baru e pequi, e a criação de gado, sem devastar o bioma.

O modelo agrícola dos fechos de pasto é oposto ao que se vê no horizonte neste ponto da Bahia, tomado por imensas fazendas de algodão, milho e soja. O antagonismo não se dá à toa. “Proteger o Cerrado é uma questão de segurança nacional: se você mexe com ele, você causa um efeito dominó imprevisível. Aqui, estão destruindo sem nenhum critério”, diz o ambientalista Marcos Beltrão, nascido e criado em Correntina.

Graças ao Aquífero Urucuia, o oeste baiano é rico em rios e nascentes, marcados pela presença de buritis em suas margens. Foto: Peter Caton/ISPN.

Trabalho coletivo mantém o Cerrado vivo

“No tempo dos meus avós era comum criar o gado solto nos Gerais [Cerrado nativo]: ele ia e voltava, tiravam o leite para as crianças e depois deixavam o rebanho livre”, diz Eldo Moreira. Segundo ele, a prática se repetia em todo o vale do Rio Arrojado, “com mais de duas mil famílias espalhadas”, e as cercas que existiam na área eram quase simbólicas, feitas com mato e madeira nativa. “Aqui, tudo sempre foi de todos”, afirma.

No modelo dos fechos de pasto, os vaqueiros reúnem o rebanho das comunidades próximas e o leva para pastar nos chapadões, extensos planaltos frequentemente maiores que 10 mil hectares. “É comum ter ao menos cinco famílias que cuidam de cada fecho, no limite das grandes fazendas, seguindo ciclos naturais do Cerrado, o preservando”, diz Samuel Britto, representante da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Centro-Oeste da Bahia.

O método também nutre um senso comunitário entre os moradores. No processo, cercam áreas de nascentes e veredas, impedindo que o rebanho pisoteie o solo úmido. “Mas hoje os Gerais estão cada vez mais distantes, às vezes a uns 80 km de onde vivemos. Tanto por conta da destruição [do bioma] quanto pela chegada do grande agronegócio, que toma nossas terras”, diz Eldo Moreira.

Orgânicos geraizeiros alimentam a região

Além da criação coletiva de gado, comunidades como a de Clemente mantêm roças de feijão, milho e mandioca nos barrancos, à beira de córregos, riachos e rios, e também nos vales. Tradicionalmente ocupam pequenos trechos de Cerrado a cada três anos, dando tempo para a recuperação do bioma.

Sua agricultura familiar é extensa e diversa. Cultivam arroz, banana, batata doce, coco-da-bahia, goiaba, laranja, manga e muito mais. Também criam aves e suínos, e todos os seus produtos alimentam a população nas cidades próximas, como Barreiras, Correntina e Formosa do Rio Preto, onde vendem nas feiras livres junto com produtos beneficiados por eles, como açúcar, cachaça, farinha de mandioca e rapadura.

Segundo a associação de Clemente, suas técnicas garantem a “produção de alimentos para o mercado interno, uma vez que a agricultura moderna mecanizada produz apenas grãos para o mercado internacional”. Nos fechos de pasto, a agricultura orgânica impera.

Mas a pandemia de covid-19 tem mudado o cenário, e lhes é difícil mudar para outro modelo de vendas, evitando as feiras livres. “Produzimos muito feijão, ovo, polvilho, farinha, rapadura. Mas [a pandemia] nos enfraqueceu, tivemos de suspender idas à feira por segurança. Hoje vendemos muito menos”, diz Moreira. É um drama partilhado com outras comunidades rurais Brasil adentro.

As dificuldades para a agricultura familiar aumentaram nos últimos meses, em parte por causa do governo federal: Jair Bolsonaro esfacelou o apoio a pequenos agricultores no dia 24 de agosto, depois de um longo atraso para sua aprovação no Congresso. Dos 17 itens do projeto, 14 foram totalmente vetados pelo presidente – um dos poucos itens mantidos é uma cobrança sobre pequenos agricultores.

A produção de farinha de mandioca é uma das bases da cultura dos geraizeiros, tanto do ponto de vista alimentar quando econômico. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace.

Guardiões do Aquífero Urucuia

No oeste baiano, a fertilidade das terras se deve, em parte, ao Aquífero Urucuia. A maioria dos seus vastos 125 mil km2 fica na Bahia, mantendo vivos rios como o Arrojado, o Corrente e o Preto. Só em Correntina e região, ao menos 343 mil pessoas dependem dele, inclusive as comunidades de fecho de pasto. Mas o avanço do agronegócio tem secado os rios da área.

A crise hídrica compromete os regos, pequenos canais de irrigação desenvolvidos pelos povos tradicionais desde seu estabelecimento na área. “Na minha adolescência tinha um rego muito perto daqui, abastecia mais de 35 famílias, daquelas bem grandes. Foi nele que aprendi a nadar, com meus amigos. Hoje está quase seco, o veio d’água está fraquinho, quem passa nem imagina o que já foi”, diz Eldo Moreira.

Se o Cerrado é mantido em pé, a biodiversidade e o Urucuia se fortalecem. O solo absorve melhor as chuvas, mantendo riachos e córregos vivos – além dos rios centrais e os regos. “Sem a mata nativa, o solo assimila menos água. Isso enquanto a agricultura irrigada avança: imagens de satélite mostram a multiplicação de pivôs centrais nas grandes lavouras de soja”, diz a professora Mercedes Bustamante, do departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB).

Ela estuda o Cerrado há décadas e critica a tomada do território por grandes traders e fazendeiros. “Quando grandes empresas chegam, vêm com suas marcas típicas: as cercas. Instalam cancelas e guaritas, símbolos que demarcam o fim do uso comum da terra, o fim do manejo de menor impacto, coletivo”, afirma.

Cultivo de soja no oeste baiano: a região conhecida como Matopiba (formada por Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) é tida como a mais nova fronteira agrícola do país. Foto: Fernanda Ligabue/Greenpeace.

Risco de seca, agrotóxicos na torneira

O reconhecimento da importância dos fechos de pasto se dá em um momento importante. O Brasil está na berlinda graças à política ambiental do governo Bolsonaro. Ao mesmo tempo, aumenta a pressão por sustentabilidade sobre gigantes do agronegócio, como Amaggi, Bunge e Cargill – todas presentes no oeste baiano.

“É uma situação muito emblemática, definidora para as empresas quanto ao seu discurso de defesa e conservação ambiental. Muito se discute sobre o tema em relação à Amazônia, mas como fica o Cerrado no oeste da Bahia?”, pergunta a professora da UnB.

Em geral, grandes grupos disputam o território com os povos tradicionais. A luta traz consequências. O agronegócio irriga em larga escala por meio de imensos pivôs nas lavouras de algodão, milho e soja. Junto, vêm os agrotóxicos.

Medições do Ministério da Saúde em 2018 apontavam ao menos 15 substâncias nocivas nos rios à beira dos fechos de pasto, que também abastecem municípios como Barreiras e São Desidério. “Faça a conta: qual o custo de produzir 1 kg de soja no Cerrado? Alteração no ciclo de chuvas, mais agrotóxicos liberados e gastos do governo para tratar os doentes”, diz o ambientalista Marcos Rogério Beltrão.

Substâncias como atrazina e glifosato foram identificadas nas águas que abastecem a região. Os dois agrotóxicos estão associados a doenças crônicas, como câncer, e a defeitos congênitos. “Estamos falando de água perdida em quantidade e qualidade. Temos de pensar na contaminação e poderemos ter ainda mais impactos, como migração forçada, êxodo dos mais jovens, condições precárias de vida nas periferias de grandes cidades”, diz Mercedes Bustamante.

Esta reportagem foi originalmente publicada no site da Mongabay Brasil

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