A pequena cidade de Correntina, no oeste baiano, ganhou o noticiário nacional em novembro de 2017, no dia de finados. Indignados com a ameaça de sumiço do rio Arrojado, mais de mil camponeses decidiram colocar fogo nas bombas que puxam água do rio para irrigar a fazenda Igarashi, com 2.539 hectares de plantação de feijão e outros cultivos. A resposta do estado da Bahia foi rápida, com a criação de uma força tarefa para encontrar culpados pelo levante. A fazenda Igarashi enviou carta aos órgãos públicos em que reforçava a necessidade de punição aos “planejadores e financiadores da invasão”, como demonstração de que “o Estado da Bahia é seguro para se empreender e produzir de forma sustentável” (íntegra do comunicado).
Há dois anos a Igarashi tem autorização do governo da Bahia para retirar 106 milhões de litros de água do rio diariamente, enquanto toda a população da cidade, cerca de 33 mil habitantes, consome 3 milhões por dia. Mas são as 55 comunidades ribeirinhas, onde moram 12 mil pessoas, que dependem diretamente do Arrojado para sobreviver: o rio fornece peixes e sua água é usada para agricultura, além das demais atividades cotidianas.
O prejuízo estimado pela empresa foi de 60 milhões de reais. As perdas dos camponeses não podem ser calculadas em dinheiro. “O levante foi de um povo desesperado de ficar sem o seu rio”, afirma Julita de Abreu Carvalho, da Comissão Pastoral da Terra. Na sua avaliação, “nenhum prejuízo financeiro poderia se comparar ao prejuízo de um rio morto”.
Foi em 2017 que as bombas começaram a desviar a água. A reação da população em Correntina, porém, foi resultado de uma pressão que se acumula desde os anos 1980, com a crescente apropriação de terras públicas por grandes fazendas, que muitas vezes usam documentos falsos, processo conhecido como grilagem. Encurraladas por esse avanço, além de quilombolas e indígenas, estão as comunidades de fundo e de fecho de pasto, que criam gado em áreas de uso comum. “Um nome novo para uma forma de viver antiga”, como define Jamilton Magalhães, morador da comunidade Buriti, do fecho de pasto Gado Bravo.
Essas famílias estão na região há 300 anos. Nesse tempo, desenvolveram um jeito de viver do Cerrado que passa pelo compartilhamento de áreas comuns para soltar o gado, colher os frutos e remédios e plantar roças. “Antes o gado era criado solto, ia até Goiás. Quando começou a grilagem, houve necessidade de fechar o pasto”, lembra Jamilton. Ao se apropriar de terras públicas onde essas comunidades viviam, as fazendas investiram em um sistema bem diferente, o da monocultura. Hoje, o oeste da Bahia é uma das áreas em que o setor está em franca expansão. E onde as comunidades de fundo e de fecho de pasto têm que lutar pelos recursos naturais necessários para o seu modo de vida.
“A partir dos anos 1990, depois do projeto de reflorestamento e do aumento da soja no município, começaram a secar os cursos d’água”, explica Marcos Rogério dos Santos, morador de Correntina e presidente da Associação Ambientalista Corrente Verde, cuja família foi expulsa pela grilagem. Ele calcula que já secaram mais de 30 nascentes e regos – pequenos canais que dão funcionamento a um sistema de irrigação coletivo e centenário, construídos e mantidos por essas comunidades.
Água e Cerrado
O Cerrado reúne a maior biodiversidade da América do Sul e é considerado a caixa d’água do Brasil. Um bioma “extremamente especial”, nas palavras do professor Altair Sales, que o estuda desde os anos 1970. O Cerrado é nascente das bacias de importantes rios, como o São Francisco, o Araguaia, o Tocantins e o Paraná. Os rios e lençóis freáticos são formados pela água acumulada pelas raízes profundas de plantas, desenvolvidas há 45 milhões de anos. “Quando se retira a vegetação acima do solo, você acaba com o aquífero para sempre”, avisa o professor.
As comunidades tradicionais ocupam o solo de modo não predatório e, por isso, ajudam a manter essas vastas áreas de Cerrado, consideradas “zonas de recarga” dos lençóis freáticos. A devastação desse bioma, como aponta Sales, se agravou nos últimos 12 anos com a construção de grandes represas e de megaprojetos de irrigação para o agronegócio.
Além da água e do bioma, as consequências da destruição ambiental são graves também para as famílias que dependem do conhecimento ancestral ligado ao Cerrado. Algumas moram em Capão do Modesto, que reúne 11 comunidades. É um dos lugares onde uma das nascentes já secou.
Reserva ambiental ou território tradicional?
Depois de sofrerem com a destruição ambiental, em uma inversão de papéis, as comunidades tradicionais são agora expulsas do território em nome da preservação. É o fenômeno conhecido como “grilagem verde”. “Empreendimentos se apropriam de terras onde vivem essas comunidades para transformá-las em reservas ambientais”, explica o professor Valney Rigonato, da Universidade Federal do Oeste da Bahia. O processo se intensificou com o novo Código Florestal, quando fazendeiros ganharam permissão para considerar áreas distantes de suas fazendas como reserva ambiental.
Esse fenômeno ganha formas violentas na tentativa de expulsão de Antônio Silva, pai de cinco filhos e membro de uma família que há pelo menos quatro gerações habita o Capão do Modesto. Ele já fez 11 boletins de ocorrência desde 2014, em que registra ameaças por denunciar que parte da área onde vive, que é terra pública, teria sido vendida com títulos fraudulentos. “Sete fazendas compraram papel de área nossa, gente do Rio Grande do Sul”, afirma.
Liliane Campos, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais, a AATR, denuncia que as fazendas entraram nas áreas “com a proteção da força armada dos pistoleiros locais, tudo para causar pânico e encurralar os posseiros tradicionais”. Ela conta que, mais recentemente, os pistoleiros foram substituídos por empresas de segurança privada. Uma delas, em abril deste ano, deteve um morador porque estava tocando gado no fecho de pasto que leva o nome de Porcos, Guarás e Pombas, vizinho ao Capão do Modesto. O morador foi conduzido à delegacia e, em seguida, ao batalhão da Polícia Militar, de onde foi liberado.
Desde novembro de 2017, corre contra uma das comunidades de Capão do Modesto um processo de manutenção de posse, movido pela empresa Agropecuária Talismã e outras pessoas. Elas reivindicam que a área onde está a comunidade é reserva legal de suas fazendas. A juíza de Correntina decidiu em favor dos fazendeiros. As comunidades entraram com recurso, e a desembargadora do Tribunal de Justiça da Bahia deu ganho em favor da comunidade no início de junho.
Procurada pela Repórter Brasil, a assessoria da Agropecuária Talismã declarou “desconhecer o ‘conflito fundiário’” e que repudia “com veemência tais acusações infundadas”. Do outro lado, a AATR informa que as comunidades em Correntina também requerem a posse de áreas em sete processos, que envolvem diversos fechos de pasto.
Regularização fundiária
O conflito acontece enquanto as famílias tentam se registrar como comunidades tradicionais junto ao governo da Bahia e cobram a regularização dos territórios coletivos.
Embora a Bahia tenha, na sua constituição de 1989, a responsabilidade de regularizar territórios de fundo e de fecho de pasto, mudanças na lei em anos recentes estabelecem um prazo para isso. As comunidades têm somente até o final deste ano para serem certificadas pelo governo, passo inicial para obterem o direito de uso do território.
Apesar das famílias viverem há centenas de anos na região, a concessão dada pelo governo terá validade de apenas 30 anos.
Para Tatiana Emilia Dias Gomes, professora da Universidade Federal da Bahia, as mudanças recentes na lei fragilizaram os direitos das comunidades frente a competição por espaço com investidores econômicos que têm interesse em desenvolver projetos de agronegócio e infraestrutura em seus territórios. Um exemplo é a Ferrovia de Integração Oeste-Leste, que atravessará Correntina e recebeu investimento chinês.
“O artigo é desastroso, o estado faz quando quer, dita as regras”, contesta Tatiana. Em reação, as comunidades passaram a realizar o que chamam de busca ativa: visitam outras comunidades tradicionais para explicar o que é preciso fazer para conseguirem acessar o direito ao território de acordo com a legislação baiana.
O Ministério Público Federal entrou com uma ação de inconstitucionalidade contra a lei da Bahia e o processo corre no Supremo Tribunal Federal, aguarda para ser analisado pela ministra Rosa Weber.
“O estado da Bahia não está do lado das comunidades. Está ao lado das fazendas, do que chamam de desenvolvimento”, critica Abeltânia Santos, agente da Comissão Pastoral da Terra. “Tem terras griladas na região, denunciadas, e o estado da Bahia não vem reconhecer em cartório os títulos fraudulentos”.
Procurado pela Repórter Brasil, o governo solicitou que os questionamentos fossem encaminhados a três secretarias. Somente a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, que já foi responsável pela certificação das comunidades, respondeu informando que 361 comunidades foram certificadas. A nenhuma delas, porém, foi outorgada concessão de uso – etapa final do processo (leia a íntegra da resposta).
Frente às pressões, as comunidades se organizam na busca pelo direito à terra e à água. “Se a gente perder o direito da gente, todo mundo vai perder a água. Os grileiros só estão desmatando. É soja, milho, algodão, desviando a água do Rio Correntina, do Rio Arrojado, do Rio Formoso, do Rio Santo Antônio”, denuncia Antônio Silva. “Nós vivemos muito tempo aqui, sabemos a quantidade de água e está diminuindo. Vamos morrer de sede”.