“Eles iam me matar”. O depoimento do ex-cobrador que acusa Magno Malta de mandar prendê-lo e torturá-lo

Luiz passou nove meses preso, deixando a cadeia cego do olho direito e com menos de 25% da visão do olho esquerdo. Inocentado da acusação de pedofilia, até hoje não recuperou a guarda da filha. Foto: Paulo Galvão

 

Paulo Galvão

 

 

EM ABRIL DE 2009, Magno Malta, do PR, estava em seu primeiro mandato no Senado pelo Espírito Santo e era presidente da CPI da Pedofilia. Luiz Alves de Lima era cobrador de ônibus em Vitória, e sua filha tratava, em um hospital público, uma infecção por oxiúro, parasita que pode provocar coceira e irritação vaginal. Um médico suspeitou de abuso sexual e chamou o Conselho Tutelar. Luiz e a esposa foram presos preventivamente no mesmo dia.

Luiz diz que foi interrogado por Magno Malta, que apareceu na delegacia para surfar no suposto caso de pedofilia, e que depois sofreu sessões de tortura no presídio a mando do senador. A esposa foi solta 42 dias depois. Luiz saiu da prisão em liberdade provisória após nove meses, já em 2010, deixando a cadeia cego do olho direito e com menos de 25% da visão do olho esquerdo por causa dos espancamentos que sofreu por meses seguidos. Hoje, para conseguir dormir e evitar “ficar na paranoia”, precisa de medicação. Evangélico, desiludiu-se com a igreja e afirma que sua religião “é eu e Deus”.

Decidido a provar sua inocência, correu atrás de médicos e laudos e comprovou que a menina tinha oxiúro, fato ignorado no exame clínico que o incriminou. O processo foi encerrado em julho de 2016, quando a Justiça o absolveu de todas as acusações, uma vez constatada a integridade do hímen da filha.

Ainda assim, o casal segue sem a guarda da criança, hoje com 12 anos. Ela morou em um abrigo e hoje está sob os cuidados da avó materna.

Considerado pelo presidente eleito Jair Bolsonaro como o “vice dos sonhos”, Magno Malta declinou o convite para compor a chapa e tentou se reeleger ao Senado em outubro, e perdeu. No entanto, ainda é cotado para assumir um cargo de destaque no novo governo federal.

Em 2017, Luiz passou a receber uma pensão mensal de R$ 2 mil devido à sua incapacidade para trabalhar. Em julho de 2018, incentivado por amigos e tendo em mãos as provas de sua inocência, protocolou denúncia no Ministério Público Estadual e também no Federal contra o médico que atestou em laudo a ruptura do hímen de sua filha, contra os delegados envolvidos no caso e contra o senador.

 

 

Ele contou sua história ao Intercept.

EU TINHA 35 [ANOS, À ÉPOCA]. Os trinta e seis fiz dentro de um tambor de água cheio de gelo. Eles fizeram isso comigo, no dia do meu aniversário. Foi o presente que eu ganhei. Eu era cobrador, com muito orgulho. Tinha uma vida normal, tinha uma vida tranquila. Sempre cuidei da minha família, sempre cuidei dos meus filhos.

Eu estava em casa. Estava até fazendo comida, mamadeira. E vi que minha esposa estava demorando. Aí chegaram os policiais lá e falaram: “Você tem que ir na delegacia, aconteceu um negócio aí”. Quando eu cheguei lá, não sabia do que se tratava. Mais tarde fui descobrir que havia uma denuncia contra mim no Conselho Tutelar. Quando cheguei, já tinham chamado a imprensa.

O dia exato não me esqueço nunca. Dia 25 de abril de 2009. Eu fui preso, fiquei três dias na delegacia. Três dias completos, esperando o Magno chegar lá [a notícia-crime que Luiz protocolou no MP acusa os delegados de convidarem Magno Malta à delegacia]. E foi quando ele chegou que me tiraram da cela e me levaram lá para cima, para conversar com ele. Na verdade, quem falava era ele, não era o delegado. Os dois delegados que cuidavam do caso só olhavam para a minha cara. Mas quem fazia as perguntas era ele [Malta]. Não tinha advogado, não tive nada [A Defensoria Pública viria a ajudá-lo a sair da prisão]. Estava por conta de Deus ali, meu amigo.

Trecho do inquérito policial que incrimina Luiz Alves de Lima com base no “sentimento pessoal” de Magno Malta Foto: Reprodução

 

Rapaz, eu nunca vi tanto repórter na minha vida. Foto para tudo quanto é lado. Começaram a pegar meu depoimento, eu fui falando. Teve uma hora que eu falei: “Você não representa nem o Ministério Público nem o Poder Judiciário. Eu não tenho nada para te dizer”. Ele [Malta] ficou puto que eu falei na frente da imprensa. Bateu na mesa com raiva e falou: “Você está preso”.

Ele pediu para todo mundo sair. Ficou eu, ele e mais dois delegados. Tinha um policial na porta. Ele falou assim… [Para] forjar uma fuga minha. “Manda ele correr. O primeiro tiro vocês dão para cima e o resto vocês dão tudo nele”. Tanto que você pode ir no IML [Instituto Médico Legal, para onde os detidos são encaminhados para serem examinados antes de seguirem para o presídio] e não tenho passagem no IML, nem para entrar, nem para sair. Para fazer exame de corpo de delito, eu não tive. E nisso, um policial que ouviu falou: “Você está mais seguro no presídio do que aqui. Lá, você ainda tem um fôlego para tentar provar sua inocência”. Pegou, me levou.

 

Tortura na cadeia

Nove meses. Uma gestação lá [na prisão].
Era um quadradinho que só tinha vaso, um chapão de ferro. Era tipo uma solitária.

A pessoa se diz evangélica, né? Mandar torturar dentro de uma cadeia. Ele não faz, não tem coragem de fazer. Tem coragem de mandar os outros fazer. Eu confirmo que foi [a mando de Malta]. Tanto que no dia que eu estava lá, o cara que estava me torturando falou: “Hoje o senador está lá em Dubai”. Não tinha motivo. Era chegar e bater mesmo. Naquele momento, eu era a pior pessoa do mundo.

Levei choque, porrada, esse dente aqui [o canino superior esquerdo] o cara foi apertando até quebrar. Ele foi apertando até estourar o dente. No meu aniversário eles me botaram dentro de um tambor de água, com gelo. Passei algemado para trás meu aniversário. “Seu presente é isso aí, seu estuprador”. Eu ouvia, isso doía lá dentro.

Se a Justiça me pegasse ali para me levar para uma audiência, eles não iam me reconhecer. Meu rosto estava desfigurado. Era um dia sim, o outro também. Os caras iam encapuzados. Não fui agredido por nenhum preso. Nenhum preso.

Desde que foi torturado, Luiz Alves de Lima precisa de lupa para ler. Foto: Paulo Galvão

 

Era tanta barbaridade, cara… Nossa, eu não gosto nem de… Vai voltando assim na minha mente…Aqueles tonéis, tipo de óleo, de latão. Eles me botaram ali. O presídio era um monte de negócio de contêiner. Ano novo também. Foram várias vezes.

Acho que pararam de me torturar depois de cinco ou seis meses. É porque eles me tiraram de lá para uma visita ver que eu estava normal. Quando a minha irmã me viu, a primeira coisa que ela falou foi meu olho. “O que é isso no seu olho?”. E o cara do meu lado: “Se você falar, os caras de noite vão te arrebentar. O que você fala aqui, você fala lá fora”. Então, eu não poderia falar nada. Mas os olhos de Deus sabiam tudo que estava acontecendo comigo. Eles não me davam comida lá. Eles jogavam comida lá dentro. No chão. Eles me davam água com barro. Eu não sei como eu não morri.

Provando a inocência

Na primeira audiência minha, a minha filha mais velha [à época com 11 anos, de outra relação de Luiz. Apenas a criança de dois anos morava com ele e a atual esposa]­­­­ disse: “Doutora, deixa a gente ficar um pouquinho perto do meu pai, tem nove meses que a gente não vê meu pai”. Ela [a promotora] falou: “Tira a algema dele, deixa ele com as filhas”. Falei: “Olha, tudo vai dar certo, pode ter certeza. Deus está do nosso lado”. E aí não teve audiência. A promotora olhava para minha cara, olhava… Se não me engano, ela disse: “Eu vejo inocência nesse rapaz”. Quando eu saí, o cara me botou no cofre de novo, o policial disse: “Aquela promotora é muita justa. Eu tenho 40 anos de polícia. Eu não vi nada em você. Se ela não te soltar hoje, amanhã ela te solta”.

Laudo médico que comprova a integridade do hímen da menina e trecho do parecer que inocenta Luiz. Foto: Reprodução

 

 

Foi assim. Ela pediu a minha soltura ao juiz. Foi aí que comecei a correr atrás. Fui atrás dos médicos. Aí peguei o prontuário, fui em Guarapari [município da Grande Vitória onde a filha de Luiz morou com a avó após a prisão dos pais], consegui pegar a ficha da minha filha. Por conta própria, tudo sozinho. Aí depois fui nessa médica [que havia diagnosticado a infecção], conversei com ela. Nossa, a médica falou tudinho na minha frente. Eu botei dentro do processo, e o promotor viu. Foi a médica que atendeu minha filha, minha esposa levava a nenê lá.

O promotor, o mesmo que mandou me prender, voltou atrás. Foi homem, foi justo. Ele não agiu politicamente, ele agiu rigorosamente dentro da justiça. Em 2015, ele deu o parecer dele me inocentando. Ele viu que estava tudo errado.

Consequências e sequelas

Rapaz, minhas filhas foram muito maltratadas. Toda minha família, né? Entrava num lugar, pessoal ficava olhando de rabo de olho. Minhas filhas sofreram muito, principalmente na escola. Teve uma que pensou até em desistir de estudar. Era muito sofrimento. Todos eles [ouviam coisas]. Ia falar o quê?

Eu perdi a infância da minha filha todinha. Minha filha aprendeu a ler sozinha. Minha filha é guerreira. Por tudo que passou. Hoje, está fazendo matemática sozinha. Tudo sozinha, sem ninguém estar ali para ajudar ela. Porque eu não poderia chegar perto dela. Minha esposa estava impedida de chegar perto dela também. É uma menina guerreira. Deus tem muito para prosperar na vida dela.

O que ele fez com minha filha. O que ele fez com uma criança de dois anos. O que ele fez, o médico… Isso é uma organização criminosa. Usaram uma criança de dois anos para ter favorecimento político.

Eu acredito na Justiça, tanto é que estou aqui. O estado julgou ele [Malta, que não se reelegeu pro Senado]. Eu senti na hora que saiu o resultado [da eleição]. Deus fez justiça. O povo fez justiça.

A gente teme. Qualquer pessoa teme. Mas eu sou uma pessoa tranquila, tenho muita fé em Deus. Acho que para fazer alguma coisa comigo, tem que pensar duas vezes. Caso aconteça alguma coisa comigo, milhões de brasileiros vão saber quem foi. E está na mão da justiça, a justiça vai saber quem foi. Comigo ou com alguém da minha família. O povo capixaba elegeu o Bolsonaro e não elegeu ele. Ele não era o braço-direito do Bolsonaro aqui? O povo capixaba está me vigiando.

Intercept entrou em contato com Magno Malta e com a Secretaria de Segurança Pública do Espírito Santo solicitando um posicionamento sobre as acusações de Luiz tanto quanto ao senador quanto ao sistema penitenciário capixaba, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.

Sobre Darlan Alves Lustosa 7977 Artigos
Darlan Lustosa é formosense que gosta da escrita e acredita que a política é um meio de transformação da vida das pessoas.Vive e mora em Formosa do Rio Preto, no extremo Oeste da Bahia, com registro profissional 6978/BA e sindicalizado, sobretudo para fortalecer a causa e defender direitos.
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